Jornalista, Carlos Monteiro, depois de iniciar a carreira, no fim dos anos 1980, no movimento sindical, trabalhou no jornal O Dia e no Diário Lance, onde foi de repórter a editor. Atualmente é freelancer e faz mestrado em Cultura e Territorialidades, na Universidade Federal Fluminense (PPCulT-UFF).
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Carlos Monteiro Símbolo da resistência de uma raça, e da miscigenação de um
povo, o Samba comemora, hoje, o seu dia, ainda enxugando as lágrimas derramadas – pelo menos
por aqueles que acreditam em um mundo mais generoso e fraterno – por conta da
morte dos cinco jovens cruelmente e brutalmente alvejados por mais de cem tiros, segundo perícia realizada esta manhã, disparados por PMs, em Costa
Barros, subúrbio do Rio. Resistir sempre foi a marca do Samba e de sua gente. Abaixo, uma lista com cinco pérolas do mais brasileiro dos ritmos contra o preconceito.
Carlos Monteiro Vista Alegre é um bairro vizinho a Irajá, onde fui criado, ambos no
subúrbio do Rio. Durante a década de 1980, a noite de Vista Alegre pulsava
fortemente. Era tão intensa que foi capa da extinta revista Domingo, do também
finado Jornal do Brasil. Certa noite – acho que em 1985, ou outro ano não muito
distante deste –, voltávamos para casa eu, Marcelo, um negro forte e operário,
com mais de 1,80 de altura; e Luiz Fernando, assim como eu, branco.
Quando alcançamos o meio da rua Manoel de Araújo, que leva à Anibal
Porto, já em Irajá, surgiu um camburão. Bigode, um cabo sem escrúpulos, conhecido
por esculachar a molecada da região, mesmo sem motivo, desceu da viatura e mandou
todo mundo encostar a mão na parede, e ficar de pernas afastadas. Até aquela dura,
nunca havia assistido a uma cena de racismo. Bigode, pelo simples prazer de
humilhar um ser humano por conta da cor da pele que este possui, deu um bico em
Marcelo.
"Não mandei abrir as pernas, negão", esbravejou o PM, diante de nosso medo
e incredulidade. "Mas eu estava com elas abertas", tentou argumentar Marcelo. Bigode
deu outro bico nele, e disparou: "cala a boca, porra!" Depois da revista
geral, Bigode volta ao camburão e vai embora. Meu amigo, cheio de ódio e
indignação, chora. OS NÚMEROS NÃO MENTEM Hoje, três décadas depois, quase nada mudou. O hediondo ato de Ascendino
Correia Leal, gerente do restaurante Garota da Tijuca, de dar bananas de “presente”
a três trabalhadores negros, no Dia da Consciência Negra, e a postura da
polícia, que ainda seleciona suspeitos, e faz vítimas, de acordo com a cor da
pele que elas tenham, são marcas indeléveis do quão lento caminhamos na questão
do racismo.
Segundo o Mapa da Violência de 2015, com base nos números de 2012, armas
de fogo vitimaram 10.632 brancos e 28.946 negros. Significa dizer que, para
cada cem mil habitantes brasileiros, morreram 11,8 brancos contra 28,5 negros. Ou
seja, foram mortos, por armas de fogo, 142% mais negros do que brancos. Ainda
segundo o Mapa da Violência, a taxa de homicídios de brancos, considerando o
período de 2003 a 2012, caiu 18,7%. A de negros aumentou 14,1%.
Quando bem moleque, minha maior ambição era poder caminhar sozinho
pela cidade. De origem humilde, não dava para sonhar muito alto. As viagens de
férias - os memoráveis acampamentos em Muriqui com a família - só começaram a
acontecer quando eu já tinha uns 15, 16 anos. Portanto, poder sair livremente pelo Rio de
Janeiro, além das ruas do meu querido Irajá, lá no subúrbio, para quem beirava
os 10, 11 anos, já era um lucro e tanto.
Se pudesse resumir minha trajetória nesse mundo seria mais
ou menos assim: Praça XI, Irajá, Vila Isabel, Laranjeiras, Flamengo, Catete. Mas,
felizmente, a intensidade de nossa vida não é medida pelo tamanho da distância que
separam os bairros nos quais moramos. Na minha opinião, ela é mensurada pela
quantidade de gente bacana que encontramos durante nosso percurso.
Mesmo que não tivesse conseguido viajar o tanto que viajei
por conta de minha profissão, e nem ultrapassado os limites de Irajá, minha
vida teria valido a pena mesmo assim. Tudo porque meu caminho cruzou com o de um
monte de gente legal. E é justamente essa gente bacana a me rodear que faz
manter acesa, dentro de mim, a chama da possibilidade de um mundo melhor, mais
justo, com mais amor e igualdade - embora todos os acontecimentos nos levem a
crer no contrário.
Iná Meireles: exemplo de liberdade
O tempo escorre por entre os dedos
Neste ano de 2015 que chega ao fim, o mundo perdeu duas
dessas pessoas maravilhosas, encantadoras. Daquelas que fazem a gente acreditar
na utopia. A médica Iná Meireles partiu na última terça-feira. Certamente irá
se encontrar com o economista Antônio Neiva, dono de um coração tão generoso
quanto o dela, que morreu no dia 24 de agosto.
Antônio Neiva: um líder nato
A vida me deu a honra de conviver muito proximamente com os
dois durante mais de dez anos. Militei com eles no PT de verdade, aquele que não
existe mais, e posso confirmar a obsessão de ambos por um mundo mais justo,
mais igual, mais fraterno. Curtimos muitos porres e festas juntos. E que
festas! Hoje, fica a saudade e a certeza de que é por gente como Neiva e Iná
que vale a pena seguir com o sonho de menino a brilhar nos olhos.
"Somos a semente, ato, mente e voz” -
Gozaguinha Carlos Monteiro
A frase o
“homem é o lobo do homem”, do dramaturgo romano Platus, tornada célebre pelo
filósofo inglês Thomas Hobbes, sempre me soou fatalista, determinista demais. Na
primeira vez que a ouvi, nos fim dos anos 1970, em uma aula de História do
professor Pedro Paulo – sei lá eu em que contexto e por qual motivo –, na Escola
Municipal Conde Pereira Carneiro, em Irajá, causou-me
apreensão. Se somos seres pensantes, como destruiríamos a nós mesmos?, indagava
à época.
O tempo
passou, a adolescência fluiu linda, a juventude chegou cheia de sonhos e
encantos, mas com ela questionamentos existenciais, vontade de mudar tudo em um
só instante. Anistia conquistada, movimentos popular e sindical ascendentes, os
anos 1980 transcorriam como que para comprovar que o homem não é nada o lobo do
homem. Mas que nada!, plagiando Benjor, que naquele tempo era Jorge Ben.
Hoje, às
vésperas de completar 51 anos, vejo que parecemos mesmo fadados a antropofagia.
Mas não a uma antropofagia criativa, reluzente, como a de Oswald de Andrade,
que anunciava a imperativa necessidade de deglutirmos a cultura daqui e de
alhures. Pluralizar para tornarmos real
o sonho de um mundo novo, de um novo homem. Erramos a rota. Vivemos em um mundo
caduco – valeu aí, Drummond, estavas certíssimo, Poeta!
Mas como bem
diz Tarcísio Motta Carvalho, professor de História do Colégio Pedro II, “que a injustiça não me seja indiferente!
Que nenhuma injustiça me seja indiferente. Mariana, Cabula, Osasco, Alemão,
Paris, Quênia, Maré, Síria, Fortaleza... Cada vida vale. Toda vida perdida
injustamente me comove e me move no sentido de querer, ainda mais intensamente,
transformar a realidade.”
Pedro Moreira O que escrevo Tem o intuito de me fazer entender Um pouco mais o mundo Com palavras, busco pessoas Com frases, construo relacionamentos Mas é nas entrelinhas que encontro o sentido.
"Pipa Voadora", do brasileiro Felipe Carvalho, feita no
Dona Marta, ganhou menção honrosa, categoria lugares,
no National Geographic Contest 2011
Carlos Monteiro
Nunca fui
muito de soltar pipa. Preferia jogar pelada e bola de gude. Mas bastava chegar as
férias da escola para o céu suburbano ficar lotado delas. Tinha para todos os
gostos: pipão, pipinha, arraia, de rabiola grande, outras nem tanto, e até
encapada de plástico transparente para atrapalhar a visão dos adversários na
hora de cruzar – o problema dessas pipas é que os donos delas às vezes as
perdiam de vista também.
Durante a “época de pipa”, ficava
difícil brincar de outra coisa. Até para o futebolzinho da tarde era ruim
juntar gente. Pela manhã, a bola rolava, mas à tarde... Não havia outro jeito:
para ter o que fazer, precisava me render. Preguiçoso para tal ofício, achava
tudo um saco. Fazer rabiola, enfadonho demais. Preparar cerol exigia muita
técnica. Tinha de arrumar cacos de vidro, colocá-los no chão – o mais liso
possível – e socá-los com um paralelepípedo até virar pó. Depois, misturar o
vidro moído com cola de madeira, que precisava ser derretida na água fervente.
Isso tudo sem ser pego em flagrante pela mãe, porque, todos sabem, linha com
cerol corta como navalha. E ainda era necessário passar o tal do cerol na
linha, que precisava ser esticada de um poste a outro, por várias voltas. Ufa!!
Para não passar
por todo este sacrifico, desviava o dinheirinho que meus avós davam para ajudar
na merenda e comprava tudo no Gugu, na Rua José Sombra, lá em Irajá. O cara era
fera no assunto. Além de ter todos os apetrechos necessários, os piões que vendia
eram demais. Mas um dia decidi deixar a vida de “mané que compra pipa” e
resolvi fazer a minha. Cortei as três varetas de bambu, preparei a armação, e a
encapei de branco com uma diagonal preta, como a camisa do Vasco. A rabiola
ficou um luxo. Dez fitas pretas, seguidas de outras dez brancas, assim
sucessivamente até o fim. Para terminar, passei cerol na linha, com direito ao
famoso ritual das três leves “estancadas” após o fim do serviço para não dar
bolha e a linha correr solta na hora de cruzar. Estava tudo pronto.
A rua era um
mar de moleques a soltar pipa. Nem só moleques. No subúrbio, até hoje, marmanjo
também se dedica a tal brincadeira. E, na maioria das vezes, são eles os
responsáveis pelas brigas mais estúpidas por conta de pipa voada. “Ta na mão,
ta na mão”, gritou Kakito, negão forte, que até já havia prestado concurso para
entrar na PM. Ele pegou um piãozão daqueles. “Quem compra pipa é mané”,
gabava-se em meio aos moleques, que nem se atreveram a tentar a sorte quando
ele, Kakito, aproximou-se para garantir o papagaio que voava ao léu.
Seguia meu
ritual. Agora, o objetivo era colocar o meu pião do Vasco no alto. “Leva lá pra
mim”, pedi a Dilsinho, que, diferentemente deste escriba, era bom na arte de
soltar pipa. Poucos metros à frente, Kakito tocava o terror. Em não mais do que
meia hora já havia cortado uns três ou quatro. “Solta”, gritei para Dilsinho. O
vento estava forte. A pipa, obra da minha criatividade sem jeito, subiu um
tanto desgovernada. Rapidamente minha criação ganhou os ares, porém,
aproximando-se perigosamente da pipa de Kakito. Percebia, nervosamente, que meu
pião não atendia aos meus comandos.
Num piscar de
olhos cheguei à conclusão de que fracassara naquela experiência aeronáutica.
Como que movida por um ódio repentino, minha pipa partiu determinada em direção
à linha da de Kakito, que tentava cruzar com uma outra, a qual, para mim,
parecia estar a, sei lá, uns 200 quilômetros de distância. Sem querer, e
completamente impotente diante da minha total falta de conhecimento técnico no
assunto, cortei Kakito no dedo, como costumávamos dizer. Lá se foi a pipa dele
embora, cheia de linha. Em fúria, já partindo em minha direção, que estava a
pouquíssimos metros dele, gritou: “vou te pegar, filho da puta...”
Não restou outra
alternativa. Larguei a lata de linha, com pipa no alto e tudo, e parti, com a
maior velocidade que meus pés já imprimiram até hoje, rumo ao prédio onde
morava. Sentia a aproximação de Kakito, e nada de alcançar a portaria. Felizmente
deu tempo de entrar e trancar o portão. Lá fora, só ouvia o berro de kakito;
“tu vai ter de sair de casa, moleque. Você não vai ficar embaixo da saia da tua
mãe pra sempre, seu merda!”
Para a
felicidade de dona Izabel, minha mãe, passei uma semana inteirinha em casa,
após o trágico ocorrido. Dividia-me entre assistir aos desenhos na TV, jogar futebol
de botão, sozinho, e ouvir “No Mundo da Bola”, resenha esportiva da Rádio
Nacional, que ia ao ar no fim da tarde. Como a velha nunca foi boba, achava
estanha aquela repentina mudança no meu comportamento. Para despistá-la, sem muito sucesso, repetia, quase como uma mantra, a frase infalível: “você sabe que não gosto de
soltar pipa.” E nem nuca soube, acrescento agora!
João Nogueira e Paulinho da Viola em fotomotomontagem do Jornal GGN
Carlos Monteiro Enquanto o
mundo assistia perplexo às atrocidades promovidas durante a Segunda Guerra
Mundial, no Brasil, como que para repor o amor desperdiçado em tempos tão
difíceis, nasciam dois gênios de nossa música. Ambos em um dia 12 de novembro.
Em 1941, no Méier, chegava João Batista Nogueira Júnior. Precisamente
um ano depois, no outro lado da cidade, em Botafogo, era a vez de Paulo César
Batista de Faria.
As
coincidências entre João Nogueira e Paulinho da Viola extrapolam o dia do
aniversário e o Batista no sobrenome de ambos. Embora formado advogado, o pai
de João, também João Nogueira, assim como o pai de Paulinho, César Faria, eram
violonistas profissionais. O primeiro tocou com Jacob do Bandolim, e até com Noel
Rosa, segundo o livro Noel, uma Biografia, de João Máximo e Carlos Didier. Já
o segundo foi integrante, desde a primeira formação, do lendário grupo Época
de Ouro. Os dois, por conta das atividades paternas, conviveram, desde muito
cedo, com monstros da nossa música, como Pixinguinha, Dilermando Reis, Canhoto
da Paraíba, entre outros.
Embora geograficamente
distantes, para aumentar ainda mais as coincidências entre as duas biografias, os
bambas, desde a adolescência, mostraram-se apaixonados por Carnaval. Paulinho,
ainda com 15 anos, foi um dos fundadores do Bloco Carnavalesco Foliões da
Anália Franco, de Jacarepaguá, onde uma tia dele morava. Já na Zona Norte,
João, com 17, começava a frequentar o Bloco Carnavalesco Labaredas do Méier. Exatamente nessas agremiações, os dois compuseram seus primeiros sambas.
Depois de emplacarem alguns sucessos nas vozes de outros
intérpretes, partem para carreiras solo, mesmo criticados prematuramente por “fazerem samba sem
serem do morro”. João grava o primeiro disco, que leva seu nome, em 1972, mas
estoura mesmo com o segundo, (E Lá Vou Eu), dois anos depois. Após gravar em
grupos com sambistas do naipe de Zé Keti, Elton Medeiros, Nelson Sargento e
muitos outros, Paulinho faz o primeiro solo, em 1968 (Paulinho da Viola). As coincidências não param por aí. Apaixonados pelo Carnaval,
Paulinho e João se encontram na Portela, ou melhor, na Ala dos Compositores da
Azul e Branco de Oswaldo Cruz. Por conta de divergências políticas, ambos
deixaram a escola por um certo período.
Assim como no
ditado popular, para justifica a regra, uma exceção. Se o samba os uniu, o
futebol os manteve afastados, fez com que sentassem em lados opostos das
arquibancadas. João Nogueira, morto em decorrência de infarto, no dia 5 de
junho de 2000, aos 58 anos, sempre cantou a alegria de ser rubro-negro; e
Paulinho da Viola, que hoje completa 73, adora dizer que tem a cruz-de-malta
cravada no peito desde que nasceu.
Salve os mestres!
Hino da Portela com João Nogueira e Paulinho da Viola, entre outros: